Conto inspirado nas traquinagens de Chico Zé
Em homenagem a seu irmão Arnaldo Del Corso – “Bem feito! ”.
A casa de Dona Pérola se encontrava agitada; todos trabalhavam com muito
esmero. Afinal no dia seguinte, domingo, haveria um almoço de crisma e tudo deveria
estar em perfeita ordem. Haja vista que seu Arnaldo, o marido, convidara para o almoço –
dentre os convidados – padre João, o celebrante da crisma, junto com tio Joaquim, irmão
de seu Arnaldo e mestre do curso de catecismo.
Entre tachos e panelas, Mafalda, a cozinheira comandava os preparativos do
almoço e sobremesas. Eram tantos odores e sabores. Mas naquele instante um aroma
adocicado invadira o espaço aéreo da casa inteira. O cheiro melado atraiu Francisco José,
filho mais novo do casal, o crismando; que se espreguiçando na porta da cozinha disse: —
Mafalda! Que cheiro bom! O que você está fazendo? É o que estou pensando?
A cozinheira trabalhava uma cauda quase em ponto de bala, respondeu: — Sim!
Olhe isso aqui! — Mostrou a ele. — Veja se não tá boa?
— Hum! Que delícia! Fiquei com água na boca! É pro pudim? — Perguntou ele.
— Oxi! Si é, minino! É pro pudinho! — Confirmou Mafalda.
— Já está pronto? — Perguntou o menino ansioso.
— Não sinhô! Tira as patas daí minino! Sua mãe disse qué tudo pra amanhã. —
Protegeu o doce a cozinheira.
— Mal posso esperar. — Alegrou-se Francisco.
Ele saiu à vida de menino quando de repente, em frente à casa, percebeu a chegada
do padrinho vindo de viagem com a família. Mas não fez qualquer questão em recebê-lo.
Escapou de fininho sem ser percebido. Depois, fazer questão de quê? Assim pensou
Francisco: o padrinho Arnóbio Arnaldo “O Malão” é só meu irmão mais velho — Aliás,
bem mais velho! Quer dizer, muito mais velho! — Um mero coadjuvante na história da
crisma. “O Malão”, como chamam Arnóbio Arnaldo, o irmão mais velho se compõe como
grande contador de vantagens. Vive de dizer aos quatro ventos suas andanças pela vida; e
outras tantas histórias afins que as pessoas já não dão mais a mínima atenção. Diz que
reproduzira dezoito vezes.
O garoto saiu a brincar pela vizinhança como de costume; porém algo o
incomodava. Estava meditabundo, calado, arredio. Falava sozinho, gesticulava, dava socos
no ar. O que ocorria com Francisco? Foi então que em um desses solilóquios – que eram
inaudíveis – extrapolou e falou em alta voz: – Eu preciso dar um jeito de comer um pedaço
daquele pudim! – Seus amigos se espantaram, debocharam. O chamaram de Chico louco.
Aí ele ficou louco mesmo. Chateou-se. Esbravejou e voltou para casa.
Chegou em casa e foi para o quarto, lá começou a planejar meios de ceifar o pudim
sem deixar marcas e, o mais importante, sem flagrante delito. Assim em rompantes
inflamados glutônicos partiu a tomá-lo de assalto; foi e voltou da cozinha várias vezes, sem
sucesso. À noite, quando todos dormiam desceu sorrateiramente; entrou na cozinha, retirou
o sonho de sua gula com muito cuidado da geladeira. Instalou-o em cima da mesa e aplicou
sua estratégia de prová-lo sem deixar marcas.
Não é que o menino encontrou a fórmula perfeita: escavou o pudim da parte central
para a beira, cavando-o circularmente por baixo acompanhando o desenho central, de
dentro para fora. O interessante foi sua destreza e precisão; olhando de cima não se
percebia o estrago na parte interna baixa do centro para a extremidade. Ele foi
extremamente hábil, perfeito.
Depois de se deliciar, guardou o pudim e saiu. Mas sua gula não cessava. O sonho
dos deuses fazia com que a vontade aumentasse exponencialmente. Os pudins da Mafalda
eram incrivelmente irresistíveis. Não teve jeito. O glutão partiu com agressividade a
executar sua manobra. Daí já satisfeito com dois nacos na pança subiu para o quarto. Mas,
o pudim ainda povoava intensamente seus pensamentos. E, o dia seguinte não chegava. Os
relógios ralentavam, de propósito. E ele não via a hora de chegar o almoço só para poder
saborear do pudim o quanto quisesse. Deitou-se e… Rola pra lá e pra cá. Desce pra vigiar o
pudim. Sobe pra se esconder de quem aparecia. Daí pra frente foi um tal de: Sobe-desce.
Desce-sobe. Sobe-desce. Desce-sobe. Sobe-desce. Desce-sobe. Sobe-desce. Desce-sobe.
Ele não aguentou.
Tomou de assalto novamente a atração principal do almoço. Deu nova colherada
por baixo, do mesmo jeito das outras e saiu. Voltou ao quarto. Pouco depois deu outra
colherada. Depois de certo tempo já nem ia mais ao quarto; ficava sentado nas escadarias
do sobrado. A noite passou larga entre Francisco José e o Pudim de Leite e o Pudim de
Leite e Francisco José.
O Francisco José passou a noite em seu quarto íntegro, de barriga cheia, sem danos
e satisfeito. O Pudim de Leite passou a noite na geladeira danificado, aparentemente em
forma: no meio com uma camada fina em balanço, sustentada pela parte externa sólida;
parecendo um telhadinho na parte do meio, uma marquise em balanço. Assim, após ter
escavado o dito cujo até o limite, dormiu. Mas ainda não estava satisfeito.
No dia seguinte, almoçaram em clima de festa Francisco José, dona Pérola, seu
Arnaldo, Arnóbio Arnaldo “O Malão” com a mulher e a filha, padre João, tia Dagmar, o
marido com as filhas e ao lado em pé estava Mafalda a coordenar os serviços. O almoço foi
alegre e com muitas histórias, risadas. Tudo corria muito bem quando dona Pérola
anunciou as sobremesas.
Francisco José ficou apreensivo. Mafalda entraria com o Pudim de Leite
aparentemente em sua forma pitoresca. Mas fazer o quê? As falhas do passado aparecem
em algum momento; na vida nada passa impune. Francisco José se levantou para ir ao
banheiro. Mas dona Pérola logo o repreendeu com um olhar fulminante. O menino, esperto
que era, até sapateava no lugar e segurava o pintinho. Tio Joaquim saiu em sua defesa: —
Pérola! Que é isto? Meninos ainda não sabem segurar o xixi. Olha o Chico Zé, coitado, tá
até segurando o bingulinho e sapateando.
— Ele sabe que aqui em casa ninguém deixa a mesa enquanto todos não acabem.
— Rebate dona Pérola.
— Você fala isto por que não é homem. Mulheres sabem segurar mais tempo. —
Argumenta o cunhado.
— Vamos deixar esta discussão para lá, gente. — Apazigua seu Arnaldo.
Mafalda entra na sala de almoço rompendo a discussão com sua voz forte. —
Agora é o momento mais importante do almoço. — Mafalda faz suspense. — Francisco
José esta é a sua sobremesa predileta! — Parada no limiar da porta — O pudinho! — em
seguida em movimento descendente rápido dá um pequeno tranco com o pudim no centro
da mesa. — Ploft! Pleft! Plift! — São ruídos da guloseima autodestruindo-se. O pudim
desabou, implodiu, afundou do meio para fora.
— Oooooh! — São os ruídos produzidos pelos comensais em uníssono. Foi uma
catástrofe hecatômbica. Só as beiras externas ficaram em pé. O meio era só migalhas.
— Francisco José! — Chamou sua atenção dona Pérola, depois de constatar a obra
mal-acabada do filho. Os olhares a mesa se viraram imediatamente para o menino, que
ruborizou e se afundou na cadeira.
Por fim, todos riram, muito. Menos o Arnóbio Arnaldo “O Malão” que não
entendeu a história. Aliás, ele só ri das próprias histórias. Mas sozinho. Ah! “O Malão” é
só o irmão mais velho — Aliás, bem mais velho! Quer dizer, muito mais velho!