A Semana



Do canto da sala (Rogério de Moura)


Era noite de 3 de junho de 1970 e no pequeno sobrado à rua capitão Francisco Martins, 110 um menino, apesar de não entender exatamente o que acontecia no país, aguardava ansioso — Do canto da sala — o início do jogo da Copa do Mundo de 70: Brasil X Tchecoslováquia. No meio da sala estavam 4 cadeiras indispostas à frente da TV Motorola, preto e branco, aguardando a chegada dos torcedores telespectadores: o pai, a mãe e as irmãs; uma de 7 e outra de 3 anos.
O pai chegou primeiro vindo do banheiro ajeitando a dentadura nova — bem durável do milagre econômico — e instalou um cigarro no canto da boca. Em seguida, ligou o televisor e se sentou na cadeira da ponta esquerda. Logo após, apareceu a mãe trazendo uma filha no colo e outra puxada pelo braço e, em silêncio, se instalou na ponta direita garantindo uma distância segura do marido. Ela ajeitou a menina de 7 a sua esquerda em uma cadeira do meio e segurou a 3 no colo. O garoto continuou no chão olhando tudo, calado. — Do canto da sala.
A transmissão via satélite logo começou e o pai regulou a antena da TV e a imagem girando o anel do seletor de canais. Depois deu uns socos na caixa do aparelho na esperança de encaixar as válvulas — a imagem ficou nítida por conta própria. Em seguida, ele se sentou sob os protestos da mulher que reivindicava outra posição para antena e uma pequena discussão já ameaçava a hegemonia do ambiente, mas os ânimos se contiveram com Hino Nacional em que, imediatamente, os dois se puseram eretos com a mão no peito, a cantar — as crianças os imitaram.
O jogo começou com narração esplêndida de Geraldo José de Almeida: “Brasil patrão da bola”, “que bola, bola”, “lindo, lindo, lindo” e logo aos 11 minutos: — “Gol da Tchecoslováquia… Petras… aos 11minutos da 1.ª etapa”. O pai acendeu um cigarro, nervoso, aproximando a cadeira do televisor enquanto a mãe se ajoelhou ao seu lado pedindo proteção à Deus. Ela segurava a menina adormecida em seus braços enquanto outra de 7 brincava com os dedos e o garoto observava a pajelança doméstica: — Do canto da sala.
Pai e mãe se entreolham se estranhando no instante incômodo em que a tensão se instalara na torcida de modo que dialogavam com palavras mascadas, distorcidas, agressivas e foi quando de repente… “Rivellinooooo, gooooooooool… do Brasil”. A sala explodiu em vibração e entre beijos e abraços, a paz se estabeleceu e o menino olhou, sem nada entender: Do canto da sala.
O jogo continuou difícil e a seleção brasileira, apesar da superioridade, não conseguia desempatar. Pelé chutou de longa distância e “Por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo, o Brasil não chegou lá”. Que jogada maravilhosa! Um dos não-gol mais lindo da história das Copas. Termina o primeiro tempo, 1 a 1.
O jogo recomeçou e com ele a emoção se acentua. O ataque brasileiro agride com toda a força a Tchecoslováquia, que se defende como pode, mas aos 14 minutos, depois de muita tensão esmagada
nas pontas de cigarro no cinzeiro… “Pelééééééé… Gooooooolll”. Foi o desempate em que marido e mulher confraternizam com beijos e abraços, as meninas dormiam e o menino vibrou entre sorrisos, olhares, cadeiras, televisor: — Do canto da sala.
A partida continuou tensa e, “Por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo… os Tchecos não empatam”. Pai e mãe alteravam os humores. A pajelança doméstica recomeçava, o homem fumava, a mulher rezava e o menino assistia: — Do canto sala. Quando de repente: “… Lá vai Jairzinho… chapelou o goleiro… matou no peito… e chutou… é gol, gol, gol, gooooool… Ja-ir-zi-nho”. Pouco depois, o ponta direita driblou metade da defesa Tcheca e marcou o quarto gol.
Brasil 4, Checoslováquia 1 e o jogo terminou em clima de festa entre beijos e abraços. A mãe pegou a menina e saiu pro quarto. O pai desligou a televisão e saiu pro outro quarto. O menino encostou as cadeiras lado a lado na parede e parou pensativo: — Do canto da sala.
Naquele ano o Brasil sagrou Tri Campeão do mundo e conquistou a taça Jules Rimet definitivamente. Dizem os críticos do Regime Militar que o sucesso futebolístico fazia parte da estratégia do engodo apregoado do tal Milagre Econômico. Bem, o que sei é que tal como o menino — Do canto da sala — o brasileiro continua posto pra escanteio até hoje em que a política dominante no Executivo, Legislativo e Judiciário não suprem os anseios e as necessidades dos cidadãos comuns. Será que ainda olhamos as coisas acontecerem e continuamos só a observar: — Do canto da sala?

Redação

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